criticismo radical parte 10: a escola da ruptura metabólica e a crítica da dissociação valor.
"Falar de uma crise da sociedade de trabalho tem que parecer mais do que estranho, tendo em vista que não apenas a ideologia burguesa, como também o marxismo do movimento operário, com uma convicção muito maior, declara sempre aquele "trabalho" a essência supra-histórica do homem como tal, fazendo desse suposto fato fundamental até a alavanca de sua crítica à sociedade burguesa. A controvérsia social e histórica que até agora dominou a modernidade, compreendida pelo marxismo como luta de classes, apoiou-se em um fundamento comum, a sociedade de trabalho, fundamento que deixa agora transparecer sua limitação e, caído em crise, aguarda sua dissolução.
Pois o trabalho como tal, considerado dessa forma seca e abstracta, não é nada supra-histórico. Em sua forma especificamente histórica o trabalho nada mais é do que a exploração económica abstracta, em empresas, da força de trabalho humana e das matérias-primas. Nesse sentido só faz parte da modernidade, e como tal foi aceito como pressuposto não questionado por ambos os sistemas conflitantes do pós-guerra, sem distinção. Mas o trabalho, nessa estranha forma abstracta, pode ser definido também como actividade que, de maneira igualmente estranha, traz sua finalidade em si mesma. É precisamente esse carácter, de finalidade inerente, que igualmente caracteriza o sistema burguês do Ocidente e o movimento operário moderno: revela-se no "ponto de vista do trabalhador" e no ethos de trabalho abstracto aquela idolatria fetichista do maior e mais intenso dispêndio possível de força de trabalho, além das necessidades concretas subjectivamente perceptíveis."
Kurz acaba dando um duplo golpe no conceito de trabalho, tanto o pensamento (neo)liberal quanto o pensamento do marxismo do movimento operário tem o trabalho como centro de suas atividades, justamente por esse erro histórico do marxismo em conceber o trabalho como categoria anistorica, o que se analisar o primeiro capítulo do capital veremos que não é bem assim, o trabalho faz parte do esquema de produção e reprodução de capital, no qual é uma categoria específica do capitalismo. Kurz assume de forma brilhante que a posição dos marxistas é fetichista, pois segundo Marx o trabalho também é mercadoria ele não é só parte da produção da mesma, e, toda mercadoria pode cair no fetichismo da mercadoria, veja o que Kurz diz mais a frente no livro:
"O socialismo do movimento operário nunca esteve muito distante desta criação fetichista da motivação do antigo protestantismo. Enquanto este colocou o trabalho abstracto a serviço da religião, aquele transformou o trabalho abstracto numa religião, da riqueza nacional endeusada, transcendendo dos fins vinculados às necessidades humanas; precisamente para a Rússia, à beira da modernidade burguesa, o socialismo era um substituto mais ou menos adequado dos elementos constitutivos religiosos do modo de produção capitalista na Europa ocidental, desde a Reforma."
Essa citação é muito interessante porque complementa o que já foi dito acima, o trabalho através do fetichismo é elevado a um grau de doutrinação (uma espécie de religião), o autor deu exemplo no protestantismo, mas isso também acontece nos pensadores liberais, o trabalho passa de ser parte do processo produtivo das mercadorias para se tornar parte intrínseca do ser social. O trabalho também é encarado pelos cristãos como um castigo divino por conta do pecado original, ou seja é impossível a abolição do trabalho no plano material porque esse é o nosso castigo eterno, dentro da esfera do marxismo a abolição do trabalho é esculachada de maneira diferente, nele o trabalho é um meio necessário para a existência, sem o trabalho não existe comida para comer segundo o marxismo, para ele o trabalho está completamente ligado a vida, se não tem trabalho não tem vida humana, ou seja, a abolição do trabalho para eles acaba se tornando a abolição da vida humana. Veja o que Kurz diz mais adiante:
"Sem dúvida, o princípio protestante do esforço abstracto e desvinculado de conteúdos sensíveis não é apenas um princípio ético, uma vez que sua ética específica provém daquele conjunto de formas sociais em que o trabalho se transforma numa actividade que traz em si sua própria finalidade, e a sociedade, numa máquina destinada ao dispêndio de força de trabalho. Mas é precisamente essa forma social que escapa a Max Weber, e não só a ele, por ser adoptada como axioma. E é somente a partir dessa forma, cuja determinação parece ser tão difícil, que o trabalho da modernidade pode ser reconhecido como fenómeno especificamente histórico, que se encontra além dos estados fundamentais ontológicos.
Essa forma específica do trabalho e o conceito de trabalho correspondente são de fato incompatíveis com todas as formações sociais anteriores da história humana, porque nestas o trabalho, seu produto e a apropriação deste ainda aparecem essencialmente em sua forma concreta, directa, sensível: como "valores de uso", na linguagem da economia política. Ainda que o trabalho, como labor no sentido antigo, como estafa e moléstia, ocupasse completamente o horizonte da vida da maioria das pessoas, isso acontecia devido ao grau de desenvolvimento relativamente baixo das forças produtivas, no "metabolismo entre os homens e a natureza" (Marx); o trabalho era, portanto, uma necessidade imposta pela natureza, porém precisamente por isso nenhum dispêndio abstracto de força de trabalho e nenhuma actividade social que traz em si sua própria finalidade.
No sistema produtor de mercadorias da modernidade, ao contrário, a lógica da necessidade foi invertida: à medida que as forças produtivas, mediante a industrialização e penetração das ciências, rompem a coacção e a prisão da "primeira natureza ", passam a ser presas numa coacção social secundária, inconscientemente produzida. A forma de reprodução social da mercadoria toma-se uma "segunda natureza ", cuja necessidade apresenta-se aos indivíduos igualmente insensível e exigente como a da "primeira natureza", apesar de sua origem puramente social."
O trabalho assim então não pode ser ontológico, os leitores das obras do Kurz costumam imputar para as obras de Lukács a dita ontologia do trabalho, o que está incorreto, Lukács vai usar o trabalho na sua ontologia como meio, não como finalidade ontológica. Essa parte é muito interessante, as formas sociais encontradas no trabalho transformam ele em um fim em si mesmo e a sociedade como uma máquina de despendido do trabalho, ou seja a sociedade acaba sendo dominada pelo trabalho para o seu próprio benefício, se analisar bem essa questão, a dominação no caso é do capital, essa dominação como Kurz vai mencionar em outro texto é uma dominação sem sujeito. A sociedade produtora de mercadorias com o advento das máquinas e das indústrias o problema da sociedade é inverso das sociedades anteriores, nessas sociedades tinha um grande problema de escassez, uma das causas da revolução francesa foi a escassez de alimentos, na nossa sociedade o problema é de superprodução, a sociedade produz mais do que consegue administrar, um exemplo da crise de superprodução é a crise de 1929 nos EUA ou as crises atuais de superprodução nos estados unidos, onde eles estão produzindo mais armas do que podem vender, diferente das crises das sociedades pré capitalistas, no capitalismo tradicional as crises são partes estruturais dessa sociedade. A URSS foi uma sociedade produtora de mercadorias que teve uma particularidade diferente das outras sociedades, a luta de classes estava sendo liderada pela classe proletária, mas ainda continuou com a lógica de produção e reprodução do capital que existe na sociedade produtora de mercadorias. O que os falsos críticos da crítica do valor falam para justificar a sua defesa ao marxismo clássico é que Kurz acredita que a luta de classes não existe mais, essa posição acaba sendo causado por um equívoco desses críticos aos textos do Kurz, a posição dele é de tirar a luta de classes como a principal fórmula de transformação, ou seja, tirar a luta de classes como a única resposta para as análises mais complexas, essa posição é defendida por Marx, a luta de classes é uma parte muito importante para o estudo da história e da sociedade do capital, no entanto ela é uma só parte do todo. Mais para frente no livro ele diz:
"Por outro lado, foi precisamente esse desenvolvimento que, num processo contraditório em si mesmo, fez nascer as forças produtivas modernas e criou uma ampliação enorme das necessidades e possibilidades dos indivíduos. Os efeitos colaterais não intencionais do moderno sistema produtor de mercadorias ocultaram, durante muito tempo, em sua fase de ascensão histórica, o conteúdo negativo com elementos positivos. Enquanto cumpria essa "missão civilizatória" (Marx), esse sistema funcionava perfeitamente, vencendo todas as relações de reprodução estamentais, estáticas, pré-modernas. As crises eram apenas interrupções em seu processo de ascensão e pareciam, a princípio, superáveis.
Também o moderno movimento operário faz parte dessa constelação do sistema produtor de mercadorias, em sua fase de enorme ascensão, bem como o marxismo, como reflexo teórico correspondente e, por fim, a génese da versão real-socialista da moderna sociedade de trabalho, cujo colapso está acontecendo diante de nossos olhos. Por estar preso dentro do horizonte histórico da ascensão do trabalho abstracto, não podia ser superado, nem ideal nem materialmente, o carácter tautológico desse trabalho, de actividade que traz em si sua própria finalidade.
O "mercado planejado" do Leste, como já revela essa designação, não eliminou as categorias do mercado. Consequentemente aparecem no socialismo real todas as categorias fundamentais do capitalismo: salário, preço e lucro (ganho da empresa). E quanto ao princípio básico do trabalho abstracto, este não se limitou a adoptá-lo, como também levou-o ao extremo.
Mas no que consistia então aquela diferença entre os sistemas que agora começa a dissolver-se? Desde o princípio, o socialismo real não podia suprimir a sociedade capitalista da modernidade. Faz parte, ele próprio, do sistema produtor de mercadorias burguês e não substitui essa forma social histórica por outra, mas sim representa somente outra fase de desenvolvimento dentro da mesma formação de época. Aquilo que prometia uma sociedade futura, pós-burguesa, revela-se como regime transitório pré-burguês, estagnado, a caminho da modernidade, como dinossauro fossilizado originado no passado heróico do capital.
1. Assim, um suspiro vindo da cripta do marxismo do movimento operário tradicionalista, exalado pela revista Arbeiterstimme [Voz do trabalhador], para citar um exemplo particularmente drástico.
2. Com modificações atuais repetem essa argumentação os fundamentalistas ecológicos que não têm consciência de sua origem na filosofia prática de pessimismo cultural, ou então procuram negá-la. Mas como sempre em sua história, de quase duzentos anos, a critica directa das ciências naturais e da industrialização tem efeito quase afirmativo por ignorar a condicionalidade histórica das formações sociais reais, interpretando as crises em sentido ontológico. A irracionalidade do fundamentalismo (ecológico e religioso) baseia-se em sua impraticabilidade, que o torna capacitado a seu papel de ideologia de legitimação negativa.
3. Em oposição a Marx, no entanto, faz isso sem qualquer critica formal dessa moderna sociedade de trabalho, cujas formas básicas são, para Weber, tão óbvias e ontológicas quanto para o marxismo do movimento operário e para os representantes da economia política burguesa.
4. É característico que na ideologia do movimento operário o conceito crítico de Marx do valor, denunciado como forma fetichista, foi invertido pela afirmação do "trabalhador criador de valores". Nessa figura ideológica, o antagonismo inconciliável de valor de troca fetichista e valor de uso sensível dissolve-se definitivamente para formar uma massa sem fundamento conceitual."
Kurz esvazia todo o conteúdo teórico e prático do marxismo do movimento operário. Ele começa observando que os países do dito "socialismo real" foram simplesmente países capitalistas e não só isso, mas todas as categorias estruturais da exploração do trabalho e da natureza foram elevados ao máximo por eles, quase como se fosse uma relação messiânica com esses conceitos como o trabalho, o lucro, o salário, o preço, etc. Kurz ao criticar o movimento operário do século passado (no qual sua crítica serve para os marxistas desse século) está na maioria das suas críticas direcionando as críticas de Marx a economia política para eles, como é o caso da crítica do trabalho, e, a colocação ainda segue pior pela parte criticada, quando os marxistas dizem "o trabalhador é o que cria valores" o que em Marx está fundamentalmente errado pois o que o trabalho faz é transformar a riqueza natural em valor, e, como o autor bem disse essa inversão da teoria de Marx pelos marxistas serviu para legitimar a ação fetichista apresentada na defesa ao trabalho. Outro ponto interessante é que Kurz no livro menciona o metabolismo e a ecologia essa última também rodeada por um ar fetichista, não só fetichista como argumenta Kurz mas rodeada de vários discursos nos quais excluem o verdadeiro problema das crises ambientais, como por exemplo o discurso ecofascista que culpaliza o ser humano em abstracto pelos desastres ambientais causados pelo homem que só começaram a acontecer durante o capitalismo. Toda a argumentação do Kurz nesse primeiro capítulo pode muito bem resumir as outras como, o livro ao analisar a queda da URSS e da Alemanha oriental usa de uma análise da realidade estupenda para prever uma crise imanente no sistema produtor de mercadorias, pois a elevação desse sistema só máximo acabou colapsando, o que para Kurz indica uma crise imanente se aproximando.
Outro texto do Kurz é "Uma Era Glacial Para a Teoria Crítica?" Que é uma carta aberta que o Kurz faz aos leitores da EXIT, esse texto carrega uma posição muito interessante de como a teoria crítica se move, veja o que ele diz:
"O facto de o mercado das ideias ser inundado por um alarido de conceitos baratos remete apenas para a crescente dificuldade da legitimação política. A euforia económica oficial está em oposição crassa com a experiência prática de vida da maioria, que não viu retoma nenhuma. Nesta situação surge uma certa tensão ideológica entre os gestores das bolhas financeiras e a casta política dependente das sondagens. Neste contexto, o consenso neoliberal transversal aos partidos não desaparece, mas ganha uma carga populista tanto maior quanto mais se fortalece a acusação recíproca de populismo. A perspectiva de alívios com Hartz IV, que no entanto não devem custar nem um cêntimo, campanhas contra a "criminalidade dos jovens estrangeiros", apelos ao capital "criador" e críticas baratas aos "salários demasiado elevados dos gestores" disputam entre si a primazia. Por outro lado, o debate sobre o clima, juntamente com a viagem de turismo da chancelerina à Gronelândia, devem sugerir consciência do problema ecológico. Não falta muito para que os moralistas dos partidos e do governo, seguindo as pisadas de Heiner Geissler, se inscrevam em bando na Attac ou na Greenpeace, para simultaneamente defenderem as emissões demasiado elevadas dos escapes dos espampanantes automóveis da indústria alemã face à concorrência dos pequenos veículos europeus."
A teoria vulgar pós moderna e o marxismo do movimento operário se move na mesma direção que o mercado se move, as teorias inclusive as científicas ao operar na lógica do mercado elas se tornam mercadorias, na era da revolução bélica as teorias passaram a ser formados dentro dessa lógica militar de forma direta ou indireta, o mesmo vale para o capitalismo cognitivo, as teorias psicológicas acabam se tornando populares, tanto as teorias científicas como as teorias sem base nenhuma (como os livros de auto ajuda e o surgimento dos coach), mesmo assim o movimento da teoria move-se para a proteção do capital, a lógica capitalista assim passa a ser atuada dentro do campo prático quanto do campo teórico. Essa lógica que move a teoria como mencionado move as supostas teorias anticapitalistas provenientes do marxismo do movimento operário, o anticapitalismo do marxismo clássico é equivalente a oposição a ditadura militar que a MLB que era controlado pelos militares para cobrir o fato de ser uma ditadura. Ele continua:
"Mesmo a esquerda do movimento não suscita quaisquer sentimentos primaveris para a elaboração da teoria crítica, antes pelo contrário. Depois de Heiligendamm (3) tornou-se claro o esgotamento de uma cultura de protesto meramente simbólica. Quanto mais se desvanecia a recordação da crítica radical da economia política, tanto mais os movimentos de protesto se tornavam acessíveis aos ideologemas da crítica truncada ao capitalismo, nos quais entroncam estratégias de frente transversal do populismo de direita. Enquanto esta conexão não for posta a descoberto, e em vez disso o anti-semitismo estrutural do impropério contra o capital "parasitário" da finança e da informação for encoberto como "inocente", de nada serve o alibi do distanciamento dos "descarrilamentos" claramente anti-semitas."
A teoria crítica não pode estar dentro da lógica do mercado de ideias, por esse motivo nenhuma teoria da crítica radical pode ser considerada de esquerda do movimento operário. O antissemitismo é estrutural da crise capitalista, ele faz parte do movimento de abolição natural do capital, uma abolição que levará a essência de nossas vidas. Um outro texto do Kurz é "Um mundo sem dinheiro" onde o autor comenta como os abolicionistas do dinheiro estavam se baseando suas teses dentro de uma postura utópica de ver como o dinheiro é importante ou não para a sociedade, mas pode ser classificado também como uma crítica dos apologéticos do trabalho que defendiam a abolição do dinheiro:
"O pensamento utópico sempre jogou com a ideia de abolir o dinheiro. Mas tal pensamento normalmente não foi longe, pois o dinheiro constitui apenas a superfície de uma determinada forma social. O dinheiro, como disse Marx, é a manifestação de uma entidade social, a saber, do "trabalho abstracto" e do valor (da valorização). Ora, quem quer abolir apenas a manifestação superficial, sem chegar ao fundo da entidade subjacente, traz mais desgraça que libertação. Num sistema de produção de mercadorias em economia empresarial, atingido o dinheiro na sua função reguladora ou mesmo totalmente abolido, no seu lugar só pode surgir uma burocracia totalitária. Na história recente, o regime de Pol Pot tornou realidade as horríveis consequências disso; mas também os regimes desenvolvimentistas do socialismo e do capitalismo de estado disso tinham elementos. Outras formas de abolição do dinheiro, como por exemplo os anéis de troca, não só têm que prescindir das vantagens de uma socialização em alto grau, mas também apenas podem trazer sub-rogações do dinheiro (senhas de serviço, etc.) e no fim têm de falhar, como é precisamente o caso de novo na Argentina."
Observe como a posição de Kurz é bastante instigante para dizer o mínimo, em todos os outros textos e livros ele defende a abolição ao dinheiro, mas nesse ele crítica, muitos comunistas podem acusar ele de hipócrita se não atentar nesses pequenos detalhes. Kurz nunca defendeu a abolição abstrata do dinheiro sem a abolição do trabalho e do estado, ele inclusive fala nesse trecho que a abolição do dinheiro se trata da razão superficial do movimento comunista, ou seja, abolir o dinheiro sem ver uma dimensão de abolição de todas as outras mercadorias é uma perspectiva pseudocientifica na análise crítica da sociedade capitalista atual, vamos ver outro ponto:
"Este aspecto da crise do dinheiro, que na realidade é uma crise do "trabalho abstracto", se possível é esquecido no debate. Mas a administração capitalista da crise reage ao estreitamento do círculo geral do dinheiro de forma não muito diferente da dos regimes socialistas de estado e das utopias totalitárias, nomeadamente com as impertinentes exigências burocráticas às pessoas involuntariamente "desmonetarizadas". Ao mesmo tempo, as ideologias de crise racistas e anti-semitas de "dinheiro bom e honrado" para "trabalho bom e honrado" chocam-se com um clima de angústia do dinheiro, em vez de avançarem para uma crítica emancipatória do sistema. Quem teria pensado nisto: o capitalismo começa a tornar-se uma utopia negativa."
O movimento da crítica do valor mostrou uma acertiva crítica aos falsos críticos presentes do marxismo do movimento operário, por exemplo a revelação que a crise econômica é uma parte intrínseca a crise do trabalho. A posição de Kurz sobre o Estado é muito parecida com o modelo entendido pelo professor Alysson Mascaro (já citado nesse artigo), o Estado faz parte da produção e reprodução do capital e surge e morre com ela, a ideia do capitalismo como utopia negativa é fascinante, essa visão pode ser sustentada quando analisamos que todos os pilares do capitalismo estão em crise, o capital atual possui uma atitude muito interessante na atualidade de atualização da alienação através dos livros de auto ajuda e dos coachings, e, uma maximação das relações capitalistas com um objetivo, a sua morte natural. O capital sabe que vai morrer, mas vai fazer de tudo para não cair sozinho, por isso é necessário mais do que nunca defender uma revolução.
O movimento da crítica do valor não ficou só na teoria de Robert Kurz e de Michel Postone, dentro da revista EXIT, um autor muito importante para o pensamento da crítica do valor é o teórico Anselm Jappe, a primeira obra que vamos analisar é o "as aventuras das mercadorias":
"A objectividade do valor também deve ser considerada como uma «projecção», no sentido antropológico. De certa maneira, é possível classificar o conceito de fetichismo da mercadoria dentro do conceito antropológico de fetichismo ou de «totemismo». O «totem» da socie dade moderna é o valor, e o poder social que é projectado sobre este totem é o trabalho, enquanto actividade fundamental do homem na sociedade produtora de mercadorias. É frequente as sociedades «primitivas» crerem na existência de um fenómeno a que se chama «mana», segundo o nome de uma das primeiras formas observadas, na Melanésia. O mana é uma força imaterial, sobrenatural e impes soal, uma espécie de «fluido» invisível ou de «aura». Concentra-se em certas pessoas ou coisas e pode ser transmitido a outros objec tos. Se o mana for tratado de maneira inadequada, pode provocar consequências negativas: ao mana está, portanto, ligado o «tabu».
Notáveis não são apenas as semelhanças - postas em relevo pelo próprio Marx - entre o valor e a religião, sendo o homem num caso como no outro dominado pelos seus próprios produtos, mas também os paralelismos entre o valor e o mana, entre o capital e o totem.
Trata-se de mais uma confirmação da afirmação marxiana de que o capitalismo faz ainda parte da «pré-história» do homem.
O conceito de «projecção», entendido como projecção incons ciente de um «poder», individual ou colectivo, sobre um elemento exterior autonomizado, do qual de seguida o homem acredita depen der, permite estabelecer uma relação entre o fetichismo de que fala a antropologia, o fetichismo da mercadoria e o conceito de fetichismo usado na teoria psicanalítica. Podemos assim afirmar que as teorias de Marx, de Durkheim e de Freud apresentam semelhanças objectivas.
As primeiras descrições etnográficas do fetichismo, do totemismo e do mana datam do final do século XVIII e do início do século XIX.
Mas só a partir dos finais do século XIX a antropologia cultural, então nascente, procura utilizar essas categorias para fornecer uma expli cação geral do pensamento religioso e simbólico. A tentativa mais conseguida nessa direcção é a de Émile Durkheim, sobretudo em J\s formas elementares da vida religiosa (1912).
Nessa obra Durkheim analisa o totemismo dos aborígenes aus tralianos, uma vez que nessa época se acreditava que esses povos se encontravam no grau mais baixo da evolução da cultura humana.
Assim, segundo Durkheim, a religião dessas populações representa uma espécie de célula originária de toda a experiência religiosa, uma célula que se pode confrontar com a religião dos povos «evo luídos» para chegar a conclusões gerais sobre a cultura humana e as suas constantes. Nesta perspectiva, a religião não surge nem como uma «verdade», nem como uma simples ilusão. Todas as religiões, as «superiores» e as «primitivas», e também a magia, formam um vasto campo: o campo do «sagrado». Mas essas diferentes formas do «divino», que têm sempre as suas raízes no mana, não são mais do que outras tantas projecções do poder da colectividade sobre um objecto externo. Na ideia de deus, a sociedade diviniza-se a si mesma e diviniza as suas próprias forças: a sociedade, na sua transcendência absoluta relativamente ao indivíduo, é para os seus membros aquilo que um deus é para os respectivos fiéis. O sagrado tem portanto uma origem social: «Uma vez que nem o homem nem a natureza têm em si mesmos um carácter sagrado, é necessário que o tenham obtido de uma outra fonte. Fora do indivíduo humano e do mundo físico terá que haver uma outra realidade capaz de conferir uma significação e valor objectivo a esta espécie de delírio, que em certo sentido as religiões são.» Cada manifestação do sagrado é expressão de uma «força»: «O que encontramos na origem e na base do pensamento religioso não são objectos ou seres determinados e distintos que possuíssem por si mesmos um carácter sagrado; são antes poderes indefinidos, forças anónimas, mais ou menos numerosas segundo as sociedades, por vezes inclusivamente reduzidas à unidade, e cuja impessoalidade é estritamente comparável à das forças físicas cujas manifestações são estudadas pelas ciências da natureza. Quanto às coisas sagradas particulares, elas não são mais do que formas indivi dualizadas desse princípio essencial [...]. Essa força pode ligar-se às palavras pronunciadas, aos gestos efectuados, tanto quanto a subs tâncias corpóreas.»" Nas tribos australianas, os objectos são sempre, por assim dizer, «sensíveis-supra-sensíveis». Cada indivíduo parti cipa da natureza do seu animal totémico e «tem portanto uma dupla natureza: nele coexistem dois seres, um homem e um animal».
O animal possui a mesma natureza dupla: «Entre os Haida, cada ani mal tem dois aspectos. Por um lado, é um ser comum, que pode ser caçado e comido: mas ao mesmo tempo é um ser sobrenatural, que tem a forma exterior de um animal e de quem o homem depende.» No entanto é a projecção que prevalece sobre a realidade empírica do objecto: «As figuras de toda a espécie que representam o totem estão rodeadas por um respeito sensivelmente superior ao que inspira o próprio ser cuja forma essas figuras reproduzem, [...] as imagens do ser totémico são mais sagradas que o próprio ser totémico.»'."
Um ponto muito interessante que Anselm Jappe traz para a teoria crítica é a antropologia e sua relação com a teoria de Marx, ele coloca inclusive uma semelhança muito importante entre Marx, Freud e Durkheim, mas a investigação antropológica sobre o fetichismo precisa ser melhor elaborada, e, ela foi pelo marxista e antropólogo Marshall Sahlins. Dentro do seu livro "cultura e razão prática" onde Sahlins faz uma análise muito interessante sobre a relação da produção de mercadorias na sociedade:
"A produção, portanto, é algo maior e diferente de uma prática lógica de eficiência material. É uma intenção cultural. O processo material de existência física é organizado como um processo significativo do ser social — o qual é para os homens, uma vez que eles são sempre definidos culturalmente de maneiras determinadas, o único modo de sua existência. Se foi Saussure quem previu o desenvolvimento de uma semiologia geral devotada ao “papel dos signos da vida social”, foi Marx quem supriu a mise-en-scène. Situando a sociedade na história, e a produção na sociedade, Marx estabeleceu a problemática de uma ciência antropológica ainda não nascida. A pergunta que fez contém sua própria resposta, na medida em que a pergunta é ela mesma a definição do símbolo: Como podemos dar conta da existência de pessoas e coisas que não podem ser reconhecidas na sua natureza física?
Já vimos que Marx, apesar disso, reservou a qualidade simbólica ao objeto em sua forma-mercadoria (fetichismo). Admitindo que os valores de uso claramente servem às necessidades humanas por suas propriedades evidentes, ele deixou de lado as relações significativas entre homens e objetos, que são essenciais para compreender a produção em qualquer forma histórica. Marx deixou a pergunta sem resposta: 'Sobre o sistema de necessidades e o sistema de trabalhos — quando se lidará com eles?'"
Observe como a teoria de Marx desmembrada por diversos autores se forma como teoria basilar das ciências modernas, mas as ciências também são a base da teoria Marxiana, a citação aqui apresentada de Sahlins trouxe uma coisa muito interessante, a lógica da produção capitalista não é uma lógica econômica por si. Mas sim uma lógica cultural daquele tipo de sociedade em si, o estudo da antropologia é um estudo muito importante pois com ele podemos trazer para a realidade uma série de novas teorias a luz(devido a multidiversidade da antropologia), e, pode responder algumas questões que acabam tornando o capitalismo natural, como a posição austríaca de natureza humana onde acaba partindo de um diagnóstico de uma sociedade completamente capitalista, a antropologia por sua vez vai tratar essas análise como uma análise enviesada. O autor acaba falando sobre os "símbolos da vida social" com isso podemos relacionar o estudo da antropologia com o estudo da linguística, vamos lembrar de uma coisa, todo objeto de fetiche é um símbolo ideológico e só é símbolo ideológico porquê foi fetichizado, sobre essa mesma posição temos que todo símbolo ideológico dentro de uma sociedade capitalista pela lógica predatória do capital é mercadoria. No mesmo livro Jappe diz:
"Não é apenas por intermédio da análise do fetichismo, no sentido etnológico, que a antropologia cultural pode contribuir para a compreensão da sociedade mercantil. Há na antropologia uma linha que vai de Mareei Mauss e Karl Polanyi até Louis Dumont e Marshall Sahlins, mesmo se é verdade que estes nomes não formam uma «escola». Não sendo de modo algum marxistas, estes autores demonstraram que a troca de equivalentes não é a única forma possível de socialização e que a subordinação total da sociedade às exigências do trabalho produtivo, tanto quanto a condição prévia dessa subordinação, a saber a separação da «economia» e do «trabalho» do campo global da vida, representam um fenómeno relativamente recente, limitado somente à sociedade capitalista. Estes teóricos vêem no «materialismo histórico» uma abordagem oposta ao seu método. No que diz respeito à ontologização do trabalho, da economia ou do pretenso «caracter limitado dos recursos», os marxistas tradicionais não se distinguem muito da antropologia burguesa corrente («formalista»). Assim sendo, não é surpreendente que os autores em questão se demarquem explicitamente de Marx, que identificam com os seus exegetas. Mas os resultados das suas investigações harmonizam-se por vezes muito bem com a «crítica do valor» e com o «Marx esotérico». De entre todas as consequências da teoria marxiana do valor que desenvolvemos até este momento, há uma que se presta particularmente bem a ser confirmada por investigações antropológicas e históricas, ao mesmo tempo que se encontra muito distanciada do marxismo tradicional: a afirmação segundo a qual a existência de uma economia autonomizada e a predominância do trabalho produtivo são características do capitalismo e não se encontram noutras sociedades, ou somente sob forma parcial."
A fala do Jappe é muito importante para entender que o processo presente no capitalismo é específico desse tipo de sociedade, o trabalho ela não tem só um fim em si mesmo, mas um começo em si mesmo. A pesquisa de Jappe sobre a antropologia é muito interessante porque passa a tornar a crítica do valor em uma teoria mais séria com um caminho mais confirmativo da sua teoria, mas a crítica do valor atingiu um limite já encontrado pelo Robert Kurz e pelo Jappe, a esposa de Kurz, Roswitha Scholz começa um processo de ruptura com a crítica do valor com a sua teoria da dissociação valor, onde ela vai ser a principal representante dessa teoria com o artigo "o valor é o homem" uma tese muito importante para a história do pensamento comunista, pois acaba colocando a luz do tempo as relações da produção e reprodução do capital com o patriarcado, veja o que ela diz a seguir:
"A constituição do valor, sexualmente específica, produz em última instância a repartição conhecida dos papéis entre os sexos; o "feminino" assim adjudicado torna-se a condição de possibilidade do princípio masculino do "trabalho" abstrato. A assimetria dessa relação, na qual o elemento sensível é marcado como feminino e por isso mesmo posto de lado e avaliado como inferior, justifica a fórmula algo sensacionalista com que caracterizamos o patriarcado sem sujeito: "o valor é o homem". Entretanto - e isso deve ser expressamente salientado - meu interesse é a investigação de uma estrutura cultural. Não são tanto homens e mulheres empíricos que tenho em mira, embora é claro que as relações empíricas entre homens e mulheres sejam definidas por essa estrutura, sem contudo serem nela totalmente absorvidas."
As relações binárias de gênero e sexo estão intrínsecas em todas as áreas do sistema produtor de mercadorias, ao falar "o valor é o homem" ela não está dizendo sobre um homem empírico, mas sobre um homem conceitual (ou cultural) intrínseco ao processo produtivo do capital, colocando as relações patriarcais em todas as áreas dessa cadeia produtiva do capital, ou seja, desde a produção de mercadorias até a esfera social do capitalismo "o valor é o homem" prevalece.
Adiante ela diz:
"Essa estrutura básica da relação de valor tem correspondência com a formação de uma esfera privada e outra pública. A esfera privada, consequentemente, é ocupada pelo tipo ideal "feminino" (família, sexualidade, etc.), ao passo que a esfera pública ("trabalho" abstrato, Estado, política, ciência, arte, etc.) é "masculina". De forma ideal, a mulher seria assim o "recosto" social para o homem, que age na esfera pública. Dessa relação (nossa velha conhecida no plano da aparência) entre esfera pública e privada pode-se deduzir uma diferenciação histórica do patriarcado, uma vez que tal relação deixou de ser parte evidente de todas as sociedades surgidas até hoje."
Essa estrutura conjuntural de gênero ideal com as esferas sociais da reprodução do capital, mostra como a mulher no capitalismo é subjugada por um processo de valorização de um ideal do ser mulher. No entanto é um erro comum presumir que os homens escapam dessas relações, o homem ideal está o tempo todo desfazendo a construção social do homem real. Também é um erro presumir que para lutar contra essas relações de gênero correlatas ao processo de produção é necessário a inclusão de inúmeros gêneros, o gênero em si existe para a produção do capital independente da sua separação interna, atualmente sendo dominante a separação dualista, uma separação interna do gênero em mais de dois lados (homem e mulher), produz de forma perpendicular uma divisão maior na esfera do valor.
Nessa mesma citação Scholz coloca a mulher ideal como responsável por cuidar da esfera privada citando alguns exemplos "(família, sexualidade, etc.)" e o homem de cuidar da esfera pública "("trabalho" abstrato, Estado, política, ciência, arte, etc)", por que eu dei ênfase nessa fala em específico? Podemos perceber que tanto a vc esfera privada quanto a pública são esferas abstratas socialmente, pois embarca somente conceitos com um grau de abstração, como a família ou a sexualidade que são conceitos abstratos inexistentes na natureza, mas são conceitos essenciais para a produção de capital, a família produz uma mercadoria em específico, a força de trabalho, essa mesma força é lapidada pela família por um processo de alienação do ser humano na sociedade produtora de mercadorias contra um processo de ruptura com essa lógica predatória do capital. A sexualidade põe uma divisão de reprodução mercadorica, com a divisão vulgar. Em uma entrevista com a Scholz chamada "o ódio às mulheres está novamente a aumentar" ela diz:
"Porque é que a discussão da relação de género é tão crucial?
Trata-se da crítica das relações patriarcais capitalistas. Se se fala apenas de capitalismo, isso é quando muito meia verdade. São destacados determinados aspectos, são explicadas as relações económicas, mas é ignorado um elemento constitutivo: a dissociação das actividades reprodutivas. E esconde-se a importância da dissociação sexualmente especificada para a forma de sujeito.
Durante muito tempo, a relação de género foi tratada como contradição secundária. Mas não se pode simplesmente deixar de fora as actividades de metade da humanidade. Não basta esta situação ser integrada na crítica do capitalismo, pelo contrário, à dissociação mediada pela categoria género tem de ser dada uma nova qualidade na própria teoria, como princípio estrutural essencial do patriarcado produtor de mercadorias."
O que a Scholz está colocando aqui é o estudo da sociedade produtora de mercadorias que não se aprofunda no estudo das relações de gênero acaba por não compreender a totalidade de todas as contradições do capital, as feministas marxistas atingiram um limite de tratar as relações de gênero como uma contradição secundária. A Scholz vai propor a relação intrínseca entre a contradição de gênero e a contradição da sociedade produtora de mercadorias. Mais adiante scholz diz:
"A crise tem repercussões diferentes nas mulheres e nos homens. Falo neste contexto de um "asselvajamento do patriarcado". Isto não significa que a relação de género se dissolva num sentido emancipatório. Nem tão-pouco significa que a estrutura fundamental da sociedade sexualmente hierárquica se torne obsoleta. Haverá mais um abrandamento dos papéis tradicionais de género em condições de empobrecimento. Tais desenvolvimentos podem ser observados, por exemplo, nas favelas do chamado Terceiro Mundo. As mulheres são aqui responsáveis pela sobrevivência da família. Os homens arrastam-se de emprego em emprego e de mulher em mulher e, na verdade, já não se sentem responsáveispelas relações nem pelos próprios filhos. Estamos aqui mais perante processos de degradação. Em situações de crise social aguda a maior carga recai sobre os ombros das mulheres."
Essa posição vai contra as leituras neoliberais do pós estruturalismo (como a leitura proposta pela Carine ferreira sobre a obra de Butler contra a leitura de Taylisi Leite sobre a autora) pois para os neoliberais a desconstrução do gênero implica essencialmente uma separação entre a relação de capital e gênero, uma literatura no entanto rasa sobre a obra de Butler que pretende na desconstrução de gênero tentar entender a totalidade do que é o "ser mulher" e o "ser homem" como oposição as considerações da Scholz aqui apresentadas, de fato Butler teve um limite na sua teoria da desconstrução de gênero, pois acabou desconsiderando as relações que a categoria de gênero tem com o processo de produção e reprodução de mercadorias, as teorias de exclusão entre a fórmula neoliberal de estudo das relações de gênero e a fórmula feita pela crítica da dissociação valor estão presentes dentro dos dois lados dessa relação, de um lado a falsa butleriana Carine ferreira e a Taylisi Leite da nova crítica do direito, as duas autoras tentam advogar a favor de uma autora, Carine ferreira defende a teoria da desconstrução de gênero de Butler contra a teoria de Scholz, enquanto Taylisi Leite defende a crítica da dissociação valor de Scholz contra a teoria de Butler, esse enfrentamento feito pelas duas é de forma essencial uma falta de uma leitura crítica radical sobre as duas autoras que não são excludentes entre si:
"Acho aqui interessante como as teorias de género e queer, que experimentaram uma espécie de alto voo após o colapso do bloco de Leste, fazem triste figura neste ponto. Elas efectuaram de certo modo uma desvalorização das relações sociais. Acreditava-se que a liberalização da sociedade e a igualdade das mulheres estivessem muito avançadas. As hierarquias de género e a estrutura da heterossexualidade compulsiva foram objecto de uma crítica com pouca garra. Teorias marxistas ou psicanalíticas foram em geral descartadas em favor de uma teoria do discurso limitada à análise das atribuições linguísticas. Estas teorias pós-estruturalistas estiveram de certo modo ligadas à exigência neoliberal de identidades flexíveis."
Nesse ponto existe sim uma crítica da teoria da desconstrução de gênero da Butler, mas é uma crítica sobre a insuficiência da teoria da Butler por acabar tendo uma falta nas análises antropológicas de gênero, tratando simplesmente a relação de gênero como ato simbólico complexo, mas aqui é importante ressaltar, Butler era uma autora de uma dupla, as butlerianas esquecem muito de complementar a sua obra com a obra de Gayle Rubin que vai estudar as relações antropológicas de gênero, a Scholz acaba por si analisar toda a relação de gênero de forma antropológica e histórica sobre a luz do capitalismo, colocando essas relações intrínsecas da produção de mercadorias e a dissociação de gênero dentro dessa sociedade, percebe-se que as duas teorias (a da Butler e Rubin, e, a da Scholz não são excludentes, muito pelo contrário, a desconstrução foi muito importante para as teorias contemporâneas inclusive da Scholz que acaba complementando a teoria das duas autoras, mas o princípio inverso também aparece, não é possível estudar scholz sem ler Butler).
Ao analisar a relação entre a escola da ruptura metabólica com a crítica da dissociação valor é notável como o patriarcado produtor de mercadorias está hoje exercendo uma lógica predatória sobre a natureza, essa ruptura metabólica não é mais uma ruptura entre o metabolismo natural e o social, mas também uma ruptura metabólica entre a natureza e as relações sociais e de gênero. Mas no longo da história existe outras correntes que se inspiraram na crítica da dissociação valor, uma delas tem como o maior expoente Alysson Mascaro com a nova crítica do direito cuja a obra já abordamos inicialmente aqui, no capítulo 2 do livro "Estado e forma política" Alysson diz:
"Nas sociedades pré-capitalistas, o poder político e o poder econômico quase sempre são indistintos. No modo de produção escravista, a eventual relação entre os senhores gera uma ação política de arranjos instáveis, que varia em termos de envergadura e possibilidades conforme as especificidades de cada sociedade. Há aquelas mais vinculadas a um mando centralizado, de um grande senhor, como foi o caso egípcio, e há aquelas mais pulverizadas, que demandam uma interação política maior, como o caso das sociedades gregas e romanas."
Quando Mascaro põe aqui uma separação entre o poder político e o poder econômico dentro da sociedade produtora de mercadorias ele não está dizendo que a análise de que o mercado e o Estado estarem intrinsecamente ligados está errada, o que ele propõe aqui é que dentro das sociedades pré capitalistas quem detém o poder político é quem detém o poder econômico de forma direta, por exemplo o clero era quem tinha o maior poder político na idade antiga e média, e, tinham o maior poder econômico. Uma das causas dessa junção direta entre poder econômico e político nas sociedades antigas é justamente a falta do Estado, pois o Estado surge no capitalismo como parte intrínseca da produção e reprodução de mercadorias, sendo assim o poder político dentro do capitalismo estabelece uma relação de produção do poder econômico, tendo a função de proteger a mercadoria de se autodestruir. Mas se o Estado só existe no capitalismo, o que existia nas sociedades antigas? Bem todas elas tinham um ponto em comum com a sociedade do capital, a hierarquia entre grupos (castas e classes por exemplo), mas dentro de todas elas tinham uma pequena diferença, o aparelho político de dominação, dentro da sociedade espartana por exemplo reinava uma aristocracia onde quem detinha o poder de organização política era a casta mais alta do exército, na idade média esse poder passou para a igreja católica e na idade moderna o poder político passou para a monarquia, todas essas relações vieram antes do Estado, mas é um erro aos que pensam no nascimento do Estado no capitalismo, ele de fato só ganhou poder na revolução francesa e inglesa quando o Estado aparece pela primeira vez, no entanto o Estado ele é formado por um longo processo de crescimento expansivo do capital que estava começando a crescer no final do feudalismo e ganhou poder de fato quando as revoluções burguesas se iniciaram, o Estado como conhecemos passou por esse processo crescimento expansivo para ter uma base forte o suficiente para tomar o poder.
Outra pessoa que vai se inspirar muito na crítica da dissociação valor é a Agnes Oliveira uma doutoranda de filosofia pela UFRN acaba muitas vezes escrevendo no twitter várias reflexões interessantes, como essa criticando a esquerda anti identitária:
"A esquerda anti-identitária é incapaz de perceber que ela mesma é um produto da crise do sujeito moderno e do capitalismo. Ela é o sintoma que já não é possível evocar a figura de um Sujeito geral capaz de sintetizar suas demandas, o que pressuporia, além disso, um conjunto de mecanismos e organizações capaz de encaminhar, de maneira unitária, suas demandas. Ela clama por esse Sujeito que assume várias versões o Povo/Povão; a Classe Trabalhadora; o Proletariado etc., mas ele recusa à atender o chamado. E, isso, apesar dela, convictamente, dizer que sabe quais são os verdadeiros interesses antagônicos, ela sabe o cep e o endereço desse "interesse" que reune todos nós numa mesma forma geral de consciência: a economia (a materialidade material concreta). Ali onde os problemas com saúde, educação, trabalho etc. vão todos se resolver, porque se estará tratando das "necessidades" (as da materialidade material concreta comum a todes). O que torna supérfluo, evidentemente, falar das especificidades que obstruem o acesso a educação, saúde etc., a pessoas trans, negras, indígenas e por aí vai. Mas isso é detalhe. De todo modo, embora a esquerda anti-identitária, supostamente, esteja com a receita de bolo na mão, saiba todas as artimanhas para evocar a Classe, ela não consegue. E aí, o problema, é resolvida na boa e velha "falsa consciência", na qual a esquerda identitária estaria agora desempenhando o papel de ideologa e lubridiando a classe trabalhadora, que não consegue se aperceber da sua vocação histórica e do seu verdadeiro interesse, que não tem haver ver com gênero, sexualidade, raça etc., nada disso aí. Quem sabe uma hora a ficha caí e se dê conta que apesar da receita em mãos - que é uma grande bosta, aliás - ela se dê conta que falta a matéria prima para repetir algo que deu no que deu: a própria realidade que ela tanto se lamenta. O sujeito moderno "universal" que servia de forma geral e que, na versão de esquerda, se assentava no trabalho, agora se estilhaçada em várias "subjetividades", porque, para além do seu questionamento pelos movimentos de "minorias", o próprio trabalho como forma social sintetizadora e subjacente às formas sociais de regulação dos conflitos e de distribuição da riqueza social entrou em crise. Mas a esquerda anti-identitária nega isso porque ela se recusa aceitar que o Deus trabalho - e com ele a própria classe trabalhadora - é finito. No fim, é também uma versão do medo que tanto assombra o sujeito moderno e a própria sociedade burguesa, que quer arrastar todo mundo pra seu próprio sacrifício em nome da forma eterna (a do trabalho, do capital e do sujeito)."
A análise da Agnes é perfeita, mas ela segue um certo grau de finitude na crítica dessa esquerda anti identitária, poderia colocar por exemplo uma crítica da centralidade do conceito de "classes" que muitas vezes é usado como uma categoria de apagamento das lutas sociais causadas pelo capital assim como a luta de classes, a Agnes é muito acertiva quando fala aqui de como a esquerda anti identitária é inconscientemente um produto da crise do sujeito moderno. Mas essa crise do sujeito moderno pode ser entendida aqui como a crise da sociedade produtora de mercadorias, o que Agnes expõe aqui é como no anti identitarismo podemos partir para uma reflexão mais profunda da esquerda como um todo, pois todo produto que essa esquerda contra as lutas identitárias criticam elas acabam retomando positivamente de outra forma e isso acontece também com a esquerda no geral inclusive a identitarista. Mas nas críticas das categorias modernas da teoria contra o capital não significa necessariamente uma posição "pós moderna", o criticismo radical não se propõe a ser pós nada, pois toda teoria pós moderna tem um laço positivo com as categorias estruturais do modernismo (seja de menor ou maior intensidade). Podemos pensar então o criticismo radical como a teoria e prática de intersecção entre todos os acertos de todas as teorias possíveis a luz de uma crítica radical.
Percebe-se na análise de Agnes uma intersecção entre Deleuze e Guatarri com Marx, Kurz, scholz, Denise, etc. Essa última em específico é uma importante autora de nossa época que foi marginalizada nos centros de estudos contemporâneos sobre essa perspectiva revolucionária, mas iremos analisar no decorrer das próximas partes do criticismo radical junto de uma análise mais aprofundada sobre a obra de Agnes de oliveira.
Podemos marcar aqui um ponto muito interessante de como as análises feitas através de uma teoria crítica embora superficialmente opostas, quando nos aprofundamos nelas existe um certo grau de intersecção dessas teorias, o capitalismo está em constante transformação prática e teórica, um criticista radical sempre se modifica para encontrar os pontos fracos do capital.
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